Luiza Erundina: “As próprias mulheres ainda não se percebem como detentoras do poder”

Ela surgiu na política institucional por meio do partido que governa o Brasil atualmente, o Partido dos Trabalhadores, do qual participou da fundação em 1980. De família camponesa e lutadora pela reforma agrária, foi a primeira mulher a ser prefeita de São Paulo, a maior cidade da América Latina. Aos 89 anos, uma palavra aparece constantemente em seu discurso: “emancipação”. A síntese de uma trajetória que é exemplo para diferentes gerações. Esta entrevista faz parte de “Institucionalizados: quando os feminismos se tornam parte do Estado”, uma investigação transnacional da LatFem sobre Argentina, Uruguai, Chile e Brasil com o apoio da FESminismos, um projeto regional da Friedrich-Ebert-Stiftung (FES).

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Você se considera feminista? Como você define o feminismo?

–É um prazer estar conversando sobre uma temática estratégica do ponto de vista da evolução humana, porque a opressão sobre a mulher atravessa milênios, séculos, sistemas, regimes. Há um traço muito forte nos destinos da trajetória de uma mulher a sua origem de classe, o ambiente cultural onde ela vive, onde ela nasceu e como ela reagiu a esse quadro. No contexto da luta feminista, eu me sinto muito associada à luta de classe, à luta por direitos sociais, econômicos e de emancipação. Eu tive que fazer minha primeira ruptura cultural e ideológica na minha origem de classe. Sou filha de camponeses sem terra, de uma região bastante atrasada em vários sentidos. Não era – e ainda não é – diferente a forma como se educa uma menina ou um menino na região nordestina, independente da condição de classe. Mas quando você é da classe popular e está subordinada a um padrão cultural na forma de conceber o papel da mulher, essa determinação é ainda mais forte.

Ou você rompe com esse padrão cultural ou continua percebendo a mulher como reprodutora da espécie, que tem que casar e ter filhos, tantos quanto o marido pretender – porque o machismo dele está associado à sua virilidade, entendida como sendo aquele que é um reprodutor, que tem muitos filhos, e as mulheres também são levadas a pensar assim. Eu rompi com esse padrão desde cedo, o qual minhas primas da minha faixa etária seguiram à risca: ou seja, chegava uma certa idade, já se preparavam para casar, ter filhos e reproduzir aquele padrão de subordinação, de dependência e de pobreza. Eu não queria me casar. sso foi uma insubordinação silenciosa, que foi determinante para todo o resto da minha vida.

Eu sabia que teria que me emancipar daquela condição de pobreza. Foi a condição de classe que me moveu, não foi a condição de gênero. Descobri o feminismo lutando contra a opressão econômica, social e também em relação à condição da mulher na comunidade. Esse momento foi decisivo para o meu processo de militância, do exercício do poder político, seja em partidos, seja em governos.

Eu queria estudar, mas meus pais não podiam bancar minha minha presença no nível educacional correspondente, já que não havia na minha pequena comunidade. Eu dependia de ajuda de parentes, pobres como a minha família, mas encontrei generosidade e acolhimento por parte irmã da minha mãe, uma viúva muito jovem. Foi a condição que eu encontrei de poder estudar, e foi através do estudo que eu ascendi socialmente. Foi o que me permitiu emancipar também política, social e economicamente.

Essa minha experiência me convenceu de que a luta de emancipação da mulher, em todos os aspectos, em uma sociedade machista e patriarcal, implica ter consciência disso e romper com essa dominação. E para se emancipar, tem que ser a melhor naquilo que a mulher faz, nessa sociedade onde a predominação masculina é maciça sobre a presença da mulher, sobretudo em espaços de poder.

Luiza en 1989

Isso atravessou toda a minha vida, até chegar a um momento em que tive de enfrentar a questão de gênero na profissão que eu escolhi, ou a que me foi possível chegar; eu pretendia fazer medicina, mas não tinha os meios porque teria que mudar-me à capital, e isso era inviável. Suspendi os meus estudos por nove anos. Enquanto isso, me dediquei à militância social pela questão da terra, contra o latifúndio e a opressão dos donos de terra – quem determinavam, inclusive, a condição de vida de determinadas famílias. Essa foi outra ruptura que eu tive que fazer. Escolhi uma profissão que me deu espaço e condições para enfrentar a luta pela democratização da terra. Essa luta pela democracia se sobrepôs a todas as outras questões que envolvem a decisão de uma jovem numa sociedade como a nossa de romper o padrão que unifica todo mundo e não encontra saídas para a situação de opressão.

–Foi nessa experiência de militância pelo direito à terra que você considera ter se encontrado com as pautas feministas, de alguma forma?

–Exatamente. Não começou pela pauta feminista, no meu caso. O feminismo veio no bojo da minha militância, da minha presença na sociedade como profissional. Assumi o serviço social, por ser uma profissão que me aproximava muito das classes populares em um meio onde não havia igualdade de direitos, igualdade de oportunidades. Não havia democracia do ponto de vista do acesso à terra. Daí, se colocou para mim com muita força a necessidade de abraçar a luta por uma reforma estrutural em relação ao acesso à terra. Ou seja, a luta pela reforma agrária.

Meu primeiro engajamento político foi na luta através da Pastoral da Terra, da Igreja Católica progressista do nordeste junto com trabalhadores camponeses que haviam se organizado pela reforma agrária e pelo direito de acesso à terra. Isso significava assegurar a todos a condição de trabalho, de geração de renda e de sobrevivência onde uma determinada pessoa ou família quisesse ou pudesse viver. Isso não existia para a maioria das famílias iguais a minha, então nós tínhamos que migrar. Quando havia mudanças na política agrária de um determinado governo, não era no sentido de dividir a terra, mas de torná-la menos acessível inclusive para o trabalhador. Não havia uma legislação que assegurasse uma condição de trabalho com plenos direitos, como havia no meios urbanos no Brasil.

Enfim, sempre tive a necessidade de estudar para me emancipar e me juntar àqueles que lutavam não pela emancipação da mulher, mas pela emancipação do trabalhador de um modo geral, que passava pela democratização da terra e do campo. No momento, o Brasil vivia a ditadura civil militar. Associar-se à luta pela reforma agrária era umas oposição ao regime militar, uma forma de subversão. Eu não o fazia por me assumir em confronto ao regime, mas eu era uma trabalhadora, filha de trabalhadores, que entendia a necessidade da democratização do acesso à terra como condição de sobrevivência e realização humana.

Nesse contexto, a mulher se  via sobrecarregada pelo fato de ser trabalhadora da terra, mas também tinha que arcar com o ônus de uma família numerosa que, muitas vezes, tinha que manter sozinha dadas as dificuldades que uma mulher enfrenta em um meio atrasado, machista e patriarcal. É uma configuração que ainda hoje predomina, com algumas nuances.

Nesse quadro, tive que reagir a uma situação política que era não poder permanecer onde eu vivia e onde eu lutar para mudar a realidade, não só pelo meu interesse, mas pelo interesse das classes trabalhadoras. Dentro dela, a mulher em especial era muito reprimida, oprimida, excluída em vários sentidos a partir de uma questão principal que era a falta de acesso à terra. Eu tive, então, que sair do lugar onde eu vivia, o nordeste, e, portanto, deixar a luta pela democratização da terra.

Tive que migrar para São Paulo (SP), mas eu não queria. Eu queria continuar lutando lá, porque eu havia entendido que aquela era a principal luta para o meu meio, para as famílias e as comunidades daquela região. Vim para São Paulo constrangida, desgostosa, frustrada. Daí, como assistente social, fiz um concurso público para a prefeitura e fui classificada. Aí me mandaram trabalhar nas favelas e cortiços, na periferia pobre da cidade. Daquela frustração que eu guardava dentro de mim, por não ter podido ficar na luta pela democratização da terra, eu me vi encontrando de novo com a mesma causa. Eu trabalhava com os camponeses na luta pela reforma agrária; chegando na capital, me deparei com os trabalhadores rurais que justamente migraram para o grande centro porque não havia sequer condições de sobrevivência naquela região. 

–No ambiente urbano também foi muito claro o recorte de gênero, não?

–Exato. O primeiro migrante da família camponesa que chega à cidade grande é o homem. Aqui ele cria vínculos e abandona a família, ou então vem com a família e a abandona, pelas dificuldades que enfrenta aqui. Quem é forte, quem arca com os desafios, os confrontos que a vida coloca para a sua família, é a mulher: a que tem a responsabilidade de alimentar os filhos e de levar a vida em frente, enquanto o marido não assume sua responsabilidade. Eu era solteira, não tive nenhum apelo para constituir família, pois seria um impeditivo para que eu pudesse me dedicar à causa coletiva.

Me dei conta de que o primeiro problema que o camponês enfrentava ao chegar na cidade era ter onde morar com sua família. Assim, ocupavam o primeiro espaço vazio que encontravam na cidade grande, na periferia, e ocupavam de madrugada para não serem vistos – porque, se vistos, eram reprimidos e expulsos. Então, vi que também não era verdade que faltavam casas na cidade: faltava casa porque sobrava terra. Vi a especulação imobiliária apropriando-se da terra urbana, impedindo possibilidades de moradia aos que chegavam do campo por uma mudança de política agrária e agrícola de governo, além da expulsão natural do latifúndio daqueles que se expressavam contra a opressão e a dominação que existia na região – que ainda hoje existe.

Assim, entrei na na luta sindical. Fui organizar politicamente a minha categoria profissional, predominantemente constituída de mulheres. Tanto na assistência social como na docência, em geral são profissões onde há predominância de mulheres. Com minhas colegas profissionais, recriamos uma associação profissional que havia em São Paulo, e há muito havia sido fechada, cassada pela ditadura militar. Na minha caminhada, sempre tive que enfrentar a perseguição política, a perseguição da ditadura, riscos reais.

Nós criamos a associação profissional e passamos a organizar politicamente a categoria. Era uma categoria conservadora. Historicamente, os assistentes sociais eram profissionais conservadores. Não de direita, mas pessoas que não tinham apelo político. É a política que resolve os problemas sociais das camadas populares. Ao contrário, o assistente social era formado de modo a não misturar política e profissão, porque isso comprometeria o caráter científico da profissão. Pura falácia. Não queriam mesmo que o assistente social se assumisse politicamente e, a partir daí, ajudasse o usuário do serviço prestado em nome do Estado. Aí, me descobri na política. Não bastava o movimento sindical.

Entrei na política pelo movimento sindical e pela luta do povo, de favelas e cortiços, pelos seus direitos básicos fundamentai: a luta das mulheres por creches para seus filhos, a luta por moradia, a luta por melhoria das condições das favelas, pela canalização de pequenos córregos que comprometiam a qualidade sanitária das famílias da periferia. Vi como a luta por direitos sociais contava com a presença massiva das mulheres, que além de trabalharem nas casas das pessoas ou em outra atividade, ainda mobilizavam sua vizinhança para fazer a luta mais geral por esses direitos sociais. Aí me dei conta de que o problema não era só a falta de terra e de moradia, era falta de muita coisa.

–Era uma cadeia de problemáticas que você foi desvelando.

–Era a falta de poder. Ou se tem poder ou se disputa o poder para, de fato, fazer o confronto de classe e ter assegurado os seus direitos de cidadania. Não havia outro instrumento além do sindicato, onde também se dava a disputa do profissional junto às instâncias de poder do Estado para conseguir respostas às demandas das classes populares na cidade grande e, sobretudo, na periferia.

Nesse momento, estava nascendo o Partido dos Trabalhadores (PT), com os metalúrgicos do ABC. Eles também haviam descoberto isso: ainda com a luta sindical, que eles travavam com muita competência e muito êxito naquele momento, com a resistência à ditadura militar que impedia a organização autônoma dos trabalhadores, também se perceberam limitados em sua disputa de poder garantir os direitos das classes trabalhadoras. Aí veio a necessidade de um partido político. Os que existiam não serviam porque reproduziam os interesses das classes dominantes. Surgiu a ideia de um partido que nascesse das portas de fábrica, das portas dos sindicatos, da periferia dos grandes centros urbanos, da luta pela reforma agrária e aquelas mesmas lutas que a gente já travava, mas por meios limitados como o sindicato, associações ou na luta nas comunidades.

No PT, nos formamos politicamente do ponto de vista da disputa e do exercício do poder. Me engajei na luta política, mas muito associada ao projeto profissional. Eu tinha como base de trabalho de militância os setores populares da periferia pobre dos grandes centros urbanos, a luta dos trabalhadores do campo, que continuam resistindo na defesa da reforma agrária e na necessidade de ter poder político. O poder político supõe a existência de partidos políticos, então organizamos um.

O PT nasceu exatamente com a vocação de ser um partido descentralizado, com participação direta do trabalhador, da trabalhadora, do espaço local, dos núcleos de base do partido. Eram os mesmos locais onde a população realizava sua fé na política, na experiência católica da teologia da libertação, concebendo a formação religiosa dos trabalhadores e trabalhadoras associada à luta por direitos, por cidadania, por igualdade, por respeito à condição da mulher, do idoso, dos jovens.

Assim, me candidatei a vereadora. Além da assistência social, eu tive que disputar um mandato de vereadora na Câmara Municipal de São Paulo. Tinha uma ferramenta mais para colocar à disposição da luta com as trabalhadoras e trabalhadores da periferia. De trazer o povo para dentro da câmara, abrir as portas do poder legislativo local para que o povo se descobrisse nele. E isso incomodou muito os detentores do poder legislativo.

Éramos cinco vereadores do PT, três mulheres e dois homens. Uma assistência social, uma professora, uma jornalista e dois operários. Éramos de origem popular. A nossa atuação foi a continuidade do nosso trabalho nos sindicatos, na periferia, nas comunidades locais de base. Isso deu uma vitalidade e uma presença do povo no exercício desses mandatos que fez toda a diferença.

–Fazendo um salto no tempo, como foi traduzir as reivindicações da sua militância ao cargo que você ocupou na prefeitura de São Paulo?

–O PT tinha força popular particularmente nos segmentos ao qual eu pertencia; portanto, no cotidiano da população. Aí se expressou de uma vez por todas o poder popular. Eu compreendi que além do executivo, do legislativo e do judiciário existe o poder popular. Portanto, eu exerci o poder popular junto com a população que eu ajudei a organizar, conscientizar dos seus direitos, da sua força para defendê-los. A predominância nessa luta era de mulheres. As mulheres se descobriram como sujeitos políticos. Sujeitos que iam à porta do prefeito reivindicar direitos de creches, de melhores condições de higiene das favelas.

Foi através do poder popular que eu cheguei ao poder institucional da prefeitura. Por isso, estou convencida de que, se não há poder popular, não há condição para que haja democracia. Só há democracia plena se houver democracia participativa, direta e representativa. Lamentavelmente, a democracia no Brasil se limita simplesmente à representativa. A democracia direta participativa não se exercita.

Eu fui vereadora, e foi assim que saí candidata a deputada estadual. Sempre em coerência com o poder popular, principalmente das mulheres. Eram mulheres exercitando o poder e se reconhecendo com poder, se emancipando através disso. Daí, eu me candidatei e entrei na prefeitura de São Paulo. Foi uma surpresa enorme para os coronéis da política paulistana e um desgosto para os donos do poder nessa grande metrópole: ser governados por uma nordestina, mulher, solteira de um partido de esquerda, de origem pobre. Eu costumava dizer que só faltava ser negra para completar o grau de preconceitos e discriminação que recaíam sobre mim pelo fato de ser detentora de todos esses aspectos, que era o fator de rejeição e de opressão. E ainda tínhamos minoria na câmara. Foi um enorme desafio. De novo, eu recorri ao poder popular.

–Como foi a interação e a articulação com as bases durante a sua gestão na prefeitura?

–Teve que ser uma gestão radicalmente democrática. As decisões estratégicas não se faziam no primeiro escalão de governo. O primeiro escalão discutia os problemas, ajudava a caracterizá-lo na base, junto com a população. A Lei Orçamentária, por exemplo, passava pelo crivo das comunidades locais, com quem a gente já havia convivido, organizado e mobilizado. Foi um plus que se colocou para as comunidades locais com os nossos mandatos: dividir com eles o poder de decidir as questões estratégicas da vida da cidade. Isso era real. Acontecia com as prioridades orçamentárias, o controle social sobre a execução dessas decisões orçamentárias: era de fato o exercício direto do poder.

Quero enfocar com muita ênfase nisso: o processo todo de trazer os trabalhadores, as trabalhadoras, os assalariados para a instância institucional se passava exatamente pelo fato de serem mulheres, em sua maioria: aquelas que se dedicavam ao cotidiano de criar os seus filhos, sua família, dar conta da sobrevivência deles e ainda ter que se mobilizar, se organizar e pressionar o poder político para que seus direitos sociais, humanos, fossem respeitados e atendidos. Por isso, elas se formavam também conosco.

Éramos muitas mulheres na equipe de governo, e isso fez uma diferença enorme. Uma mulher exercita o poder de forma diferente – a menos que ela tenha cabeça de homem. Também acontece isso. A mulher pode passar a ter poder político, mas depende do que ela faz com esse poder. Além do movimento feminista despertar a mulher para a sua condição e emancipar-se, ser dona de suas escolhas, ainda tem a questão de classe. Quando ela chega no Estado para governá-lo – um lugar historicamente hegemonizado, predominantemente gerido e usufruído pela classe dominante –, de repente esse Estado passa a se abrir. Abrir portas, janelas, trazer o povo para dentro, incomodar, cobrar, denunciar.

Não é que eles me poupassem, não. Houve greves no segmento de transporte. A população reivindicava, os movimentos iam à porta da prefeitura. Meu gabinete ficava no primeiro andar. Eu descia, e lá estava uma multidão de pessoas com bandeiras, reivindicando aquilo que já estávamos oferecendo, dentro dos limites daquele poder que se dispunha. Estar no poder institucional me colocou numa situação de enfrentar o poder popular.

Me lembro de uma militante do movimento de saúde que veio reivindicar recursos. Era muita gente. Eu tinha estado com eles na véspera, com um grupo de moradores, para definir quanto íamos destinar no ano seguinte para a saúde. Depois, eles foram ao governo do Estado reivindicar também, mas não foram recebidos, e voltaram à prefeitura para reivindicar mais. Eu desci, irritada, subi no caminhão e disse a eles que eram injustos, ingratos. Sabiam que nós havíamos já havíamos conversado e destinado o que era possível destinar, e isso estava garantido. Então uma militante do movimento virou para mim e disse: “Mas foi você quem nos ensinou a fazer assim. Você nunca foi das que abaixava os braços porque diziam que não havia dinheiro. Nós estamos fazendo a mesma coisa.”

Eu me confrontei sendo originária do poder do povo convivendo com o poder institucional. Não é o mesmo estar em um movimento do que estar no exercício do poder institucional. Já não é o mesmo. A sua cabeça é outra. Houve várias situações onde tive que lidar com os limites e determinações do poder institucional tendo demandas diversas, grandes, amplas, dos interesses em geral da cidade.

Hoje posso dizer, pela experiência que eu tive e sigo tendo: só vale a pena um partido que se pretende socialista o que tenha um projeto de mudança real, de transformar as estruturas de poder. O que justifica você deixar a luta popular, no meio do povo, para ir para a prefeitura? É o quanto se consegue colocar esse espaço de poder à disposição do povo. Para que a população exerça o poder. Poder de decidir as prioridades de um orçamento, o controle do que fazer primeiro, as decisões mais importantes. As políticas que implementamos – ainda com minoria na Câmara, a duras penas, com o apoio popular –até hoje são preservadas. E só se preservam aquelas ações de partidos de esquerda que assumem o poder do Estado nos marcos do capitalismo se forem projetos e propostas que tenham sentido para o interesse da maioria, porque essa maioria vai defendê-los.

–Você poderia dar alguns exemplos dessas políticas que permaneceram desde o seu mandato na prefeitura de São Paulo?

–Por exemplo, a questão do transporte público. Eu tentei implementar a política de tarifa zero no penúltimo ano do governo. Não consegui porque tinha minoria na Câmara e tinha resistência inclusive do meu próprio partido. Mas insistimos nessa pauta. Saímos do governo, mas a população incorporou essa política, e hoje ela é uma proposta de emenda constitucional de minha autoria na Câmara Federal, que hoje está na Comissão de Justiça. Já há prefeituras implementando políticas de tarifa zero, fruto de uma ideia de um governo democrático popular há anos atrás.

Outro exemplo é a política de alfabetização de jovens e adultos do MOVA, o Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos, criado por Paulo Freire. Ainda hoje esses cursos estão nas casas e espaços de cada região da cidade exercitando a alfabetização de jovens e adultos na perspectiva freiriana, conscientizando as pessoas, organizando, politizando. Isso fica. Portanto, são comportamentos. As mudanças se efetuam quando as pessoas que passam por esse governo como cidadãos e cidadãs, ou como membros, tomam essas mudanças como valores, concepções, como modo de ser e comportar-se. Temos um quadro único de professores em SP. Por que? Porque passou por uma política de educação emancipadora de Paulo Freire. Também emancipou o próprio professor.

Na saúde também. Descentralizamos a política de saúde pelas regiões da cidade. Fortalecemos as instâncias locais de poder administrativo da cidade, com a participação direta da sociedade. Essas coisas fazem a diferença no governo de uma mulher, de uma feminista, que tem um olhar de emancipação e de educadora. Somos essencialmente educadoras, e nos formamos junto ao cidadão o tempo todo.

Hoje, me mantenho, na idade que tenho e no 7º mandato de deputada federal, igualmente motivada, interessada, criando iniciativas. Amanhã tenho um encontro com 60 mulheres que querem saber como estão as coisas, por onde estamos caminhando. Essa organização de mulheres, com base justamente nesses laços, na convivência e no enfrentamento de problemas comuns, não termina. Continua. Por isso, faz sentido um partido que se pretende capaz de promover mudanças estruturais. Por isso, a coisa muda, mas muda de verdade, quando as mulheres disputam o poder nas instâncias do Estado, particularmente nas instâncias locais de poder. E definitivamente não é que se vão e tudo se cai. Não! Não cai porque o que toca as pessoas em sua índole, em suas mentes e corações, em sua essência, as transforma, e elas passam a ser agentes de mudança. A mudança se dá através das pessoas que vivem essa experiência.

A que vivemos [com a prefeitura de SP] foi uma experiência definitiva. Estamos a 34 anos dessa experiência e hoje está tão mais viva do que esteve logo que deixamos o governo. Não é mérito de Luiza Erundina: é mérito de um projeto de partido e político que se percebe atuando de forma a assegurar a emancipação da mulher. Não é necessário que um movimento seja rigorosamente feminista. É a presença da mulher na luta que faz a luta distinta. Michelle Bachelet dizia: quanto mais uma mulher entra na política, mais a política se transforma. E é isso. Basta ter mulheres nas instâncias de poder, se exercitando nesse poder, e questionando para que serve esse poder, e ela transforma a maneira de exercê-lo. Consequentemente, o impacto desse poder na vida das pessoas em uma determinada instância da cidade, de uma região, de um estado.

É um projeto para sempre e não tem fim, e não se resolve com uma eleição, a não ser emancipando as mulheres e os homens trabalhadores, os jovens, os idosos e quem mais interesse ter seus direitos, sua cidadania e sua felicidade garantidos. A gente é feliz assim, sendo sujeitos. Sujeitos que transformam, que conseguem encontrar brechas e saídas para resolver seus impasses. Ser sujeitos políticos é isso.

É isso que emancipa a mulher. É torná-la livre para ela ser o que ela bem entender. Ela deve ter consciência do quanto o seu potencial é algo tão excepcional e tão especial na forma de ser, ser militante política, ser parlamentar, ser prefeita, por ser mulher. Nem sempre estão dados os meios para dar essa disputa, ainda que tenhamos conquistado coisas importantes: as cotas, as instâncias coletivas de mulheres, o parlamento, as instâncias de poder do Estado. 

Isso se faz com a efetiva participação da sociedade, e modificando o próprio partido, um partido que não envelhece; e se envelhece, é porque já está na hora de sair de campo, deixar lugar para outra força política que vem de baixo. É assim que faz sentido que a mulher esteja presente. Uma mulher consciente de seu papel transforma o seu meio onde ela está. Mas, evidentemente, trazendo consigo outras mulheres que, somadas a ela, potencializam a presença dela nos espaços onde ela estiver. Isso é feminismo.

–Qual foi sua maior surpresa – agradável ou não – ao ocupar um cargo executivo? É possível transformar o Estado de dentro?

–São determinações que a própria instância de poder apresenta. Por exemplo, nós poderíamos ter deixado consolidada a política do aborto legal. Criamos o programa de aborto legal em um hospital de um município, que foi a primeira experiência cumprindo o Código Civil de 1940. Deixamos uma experiência exitosa, importante, para cumprir o direito ao aborto legal, e nunca foi fechado.

Certas políticas que não conseguiram ser incorporadas por quem se beneficiou delas acabam morrendo, desaparecem. Embora quando há condições de retomar, ela seja retomada, mesmo que em outro patamar. Por exemplo, não poder garantir a questão da moradia, minha origem de militância popular, para reduzir o problema da exclusão em relação à moradia: essa é uma questão que me frustra.

Investimos em cerca de 40 mil unidades habitacionais por conta da prefeitura em regime de mutirão, reduzindo em 40% os custos, e casas muito modernas, bem planejadas por arquitetos que passaram por concurso público. Não eram essas gaiolas que em geral se fazem para o povo. A casa do povo tem que ser segura, tem que ser bonita, tem que ser construída junto com ele, em mutirão, para reduzir custos. Isso é uma frustração. Um prefeito ou prefeita que queira garantir o direito à moradia – que é um direito constitucional – não vai conseguir no âmbito do poder local, porque não tem a política econômica. Tem que ter o poder máximo do Estado. E mesmo com o poder máximo do Estado, se não houver democratização da terra, no campo e na cidade, a demanda por moradia jamais será atendida plenamente. Isso é uma frustração, é um limite. Mas é um limite que nos impulsiona para mais luta, mais confronto com o detentor do poder , que é quem detém o poder econômico, e, consequentemente, o poder político.

Assim, é uma luta política permanente, não tem férias. Ela não surge só para a eleição; é uma luta de todo dia, senão, você perde conquistas. Quantas conquistas se perdem exatamente de um governo para outro porque não se posicionaram certas políticas? Enfim, mas isso é conquista, é perda, é retomada, é conquista: é da dinâmica da luta. A dinâmica da luta inclui o elemento cultural, ideológico. Por exemplo, temos um entrave como mulheres, do ponto de vista da participação política, pela nossa educação que não nos liberta. Não somos formadas na família, na escola, na comunidade em geral, de forma a nos sentimos sujeitos de direitos e de poder mudar as coisas. Não, a maioria não acredita nisso. A própria mulher não se percebe ainda como detentora de poder. 

É um déficit da educação política da mulher, sua formação política. É cultural. Um déficit a ser superado na emancipação política da mulher pela formação de origem da família conservadora. A questão de classe tem que atravessar toda a luta de gênero. A luta de gênero por si só não resolve o problema. Aliás, a luta identitária é necessária, é oportuna, mas se não for cruzada, se não perpassa a luta de classes, você não muda o status quo de uma realidade das mulheres, por exemplo, em um determinado momento da história. Devemos perceber-nos iguais em direitos e dignidade, como está na própria Constituição. Não é invenção da esquerda, está na Constituição. Os próprios partidos de esquerda não são os que têm maior número de mulheres dirigentes. Não nos damos conta da importância de disputar o poder e de conquistá-lo. Enquanto não nos descobrirmos  querendo o poder, ele não chega às nossas mãos, pelo menos não o quanto chega para os homens.

–Deve ser uma mudança interna do próprio sistema partidário?

–Exatamente. Os homens querem muito o poder, sem nem se perguntar para que. É para eles mesmos. Não é preciso questionar. Já a mulher tem que se perguntar para se arriscar, para se colocar à disposição de enfrentar situações que existem no conflito, na disputa do poder, no preconceito contra as mulheres.

Lembro quando éramos três mulheres vereadoras na nossa bancada da Câmara Municipal. Nos perguntavam se tínhamos pernas bonitas. Não havia banheiro feminino, porque só tinha homem lá. Jamais se cogitava que um dia uma mulher pudesse chegar lá.

Somos mais da metade da população, mas nós não nos sentimos com poder, porque ninguém nos diz que temos poder. Nem a família, nem as igrejas – que também são dominadas por homens –, nem os partidos políticos. Somos nós mesmas. Foi no momento em que o movimento feminista se assumiu como tal que se abriu a  possibilidade de querer e crescer nos espaços do poder. Nunca tivemos uma bancada [de mulheres] tão grande como a que temos hoje na Câmara dos Deputados. Eu estou lá no 7º mandato, e só agora que temos uma bancada de 15% de mulheres na casa. Sempre foi menos do que isso.

A política de cotas tem permitido que a mulher disponha de espaço de mídia para apresentar suas ideias, custear as despesas de uma campanha, para ela se apresentar, para aprender a falar. Isso é negado à mulher. Não lhe é oferecido, não lhe é dado, você tem que disputar. Por isso as organizações de mulheres são necessárias. Mas não suficientes. Se você ficar apenas nas organizações de mulheres e não tiver um apelo ao exercício dos espaços de política institucional, você não avança na presença da mulher nos espaços de poder e, em consequência, na conquista dos seus direitos. É querer o poder. É buscar o poder.

Isso tem que estar na nossa cabeça: “eu quero poder, eu quero disputar o poder”. Mas, claro, para transformá-lo. Disputar o poder com o homem e exercitá-lo igual, não tem nenhuma diferença. Você tem que conquistar o poder para transformá-lo. E como se faz isso? Exercitar o poder democrático, com a participação de quem é alvo dessa ação política de quem detém um determinado poder. E aí muda o mundo. Não é só pela quantidade, isso não muda nada, o que muda é a qualidade, de um dia poder estar majoritariamente nas mãos das mulheres. Aí não haverá tragédias humanas como a que vemos hoje, em que não se respeitam os direitos humanos. Por isso, temos que estimular a participação política das mulheres.

–A partir da sua trajetória e sua experiência como prefeita e agora como deputada federal, como você pensa a política feminista? O que faz uma política ser feminista?

Trazer a mulher para decidir em conjunto sobre essa política. Se a mulher não participar da definição de uma política, mesmo que voltada ao interesse da mulher, ela não se exercita plenamente. Tudo o que nós decidimos [na gestão da prefeitura], seja em relação à mulher, seja em relação à família de um modo geral, seja em relação aos direitos sociais, foram feitas com decisão coletiva, com a mulher deliberando, opinando, controlando depois a execução da política. É isso que a emancipa, que seja reivindicado por ela. Essas políticas têm que ser discutidas e decididas pela maioria das mulheres. Por isso, criamos o Conselho de Mulheres junto ao  poder central da prefeitura logo que entramos no governo. Eram mulheres não do meu partido ou escolhidas por mim, mas pela própria sociedade, e com orçamento próprio. O mesmo foi feito em relação aos idosos, aos jovens e à população negra. O que a gente muda ao fazer é o quanto se faz junto com quem se beneficia. Que se sintam autores daquela medida. Eu estou convencida: a democracia plena, radical, do exercício direto do poder é algo que transforma tudo o que existe de desviado ou não atendido, qualquer que seja o segmento da sociedade. A democracia de gênero, de raça, social, em todos os sentidos, é plena, radical, eficaz, tem eficácia, muda a realidade, muda a mulher e a mulher muda o seu entorno.

–O que você opina de um ministério centrado nas políticas de gênero? É algo importante?

–É uma conquista se se tem no horizonte da organização de mulheres naquele país. Não acho que seja tão fundamental, que sem isso não seria possível avançar com as conquistas das mulheres. Às vezes o ministério se subordina a outro poder maior que termina não tendo autonomia para fazer o que gostaria. Não é a estrutura do poder que resolve, é o poder em si mesmo. Não acho que seja fundamental ter um ministério. Acho que é fundamental, sim, que todos os ministérios tenham uma mulher presente decidindo com os homens à frente dessa instância.

O aparato, o instrumento em si não muda o resultado da participação da mulher; é o quanto ela está convencida do seu papel como sujeito de direitos, como sujeito de poder e disposta a disputar os espaços para o exercício do poder. Ela tem que ter uma atitude ativa, de iniciativa, segurança do que quer, do que pensa. Não digo ser autoritária; ela pode inclusive colocar suas posições e ser vencedora nessa disputa de posições pelo seu jeito próprio. Em todos os espaços, é necessário ter o maior número possível de mulheres para feminizar o mundo.

“Institucionalizados: quando os feminismos se tornam parte do Estado” é uma pesquisa transnacional especial do LATFEM sobre Argentina, Uruguai, Chile e Brasil, apoiada pelo FESminismos, um projeto regional da Friedrich-Ebert-Stiftung (FES).