–Você se considera feminist? Como você vê o movimento feminista no Brasil hoje?
–Sim, me considero feminista. Sou filha de uma militante do movimento de mulheres negras e cresci com ela em seminários e encontros de mulheres negras no Brasil. Para além do feminismo, é importante entender esse recorte de classe e raça nesses debates de gênero. O movimento feminista no Braisl, especialmente nos últimos anos, tem ganhado muita força. Eu cresci com minha mãe em uma perspectiva de formação mais tradicional, com as promotoras legais populares em São Paulo e nesses encontros de mulheres negras. Mas hoje vemos como a discussão sobre o feminismo está em todas as idades, em vários espaços e se organiza de diversas formas, em diversos coletivos, que são verticais ou horizontais, que se propõem a um debate mais geral ou bem focado. Acho que as redes sociais têm um papel importante nesse processo, e algumas políticas públicas dos governos progressistas também.
Minha mãe fez o curso de formação das promotoras legais populares, inclusive eu acompanhei esse curso com ela. Tem fotos minhas de eu desenhando, eu era muito pequena. Ela participou de encontros de mulheres negras em Belo Horizonte e São Paulo, acompanhou reuniões da União de Mulheres e outras no movimento negro, mas não chegou a se organizar. No final, quem se organizou fui eu, que me filiei a um partido. Para não dizer que ela não integrava uma organização, ela era parte do Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo. Era funcionária pública, municipal, hoje já aposentada.
–Como foi sua entrada em uma organização do movimento negro?
–Foi a partir da minha entrada na universidade. Eu entrei na Universidade Presbiteriana Mackenzie graças ao ProUni (Programa Universidade Para Todos). Ganhei uma bolsa de 100% e fiz direito nessa faculdade. A partir desse contato com o movimento estudantil universitário, com algumas discussões sobre enfrentamento ao racismo, sobre o combate às opressões e violências de gênero e raça, montamos um coletivo de esquerda em uma universidade que é historicamente conservadora. A partir dessa organização do movimento estudantil, fui participando de outros espaços que me levaram a conhecer pessoas da juventude do Partido dos Trabalhadores (PT), do movimento negro da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen), que eu faço parte até hoje. Me filiei ao PT em 2012, me organizei na Conen, e comecei esse processo de militância, já não só como a filha da Rose, minha mãe, mas também como Tamires ativista, liderança estudantil, do movimento negro.
–Já pensando em como traduzir esse repertório e a vivência da militância para a política institucional, que características tem uma política feminista dentro do Estado?
–Eu acredito que o movimento feminista, especialmente o interseccional, traz uma abordagem de entender o quanto os conflitos são estruturais e estão relacionados a uma dinâmica de opressão que envolve gênero, raça e classe. A perspectiva feminista que eu acredito e sigo é o feminismo negro e interseccional, que tem essa abordagem ampla.
Na produção de política pública, isso é importante para entender quem é o público-alvo. Não adianta a gente montar o Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci), que é o programa que eu coordeno aqui no Ministério da Justiça e Segurança Pública, sem entender qual é o alvo da violência no Brasil hoje. Quem são essas pessoas, onde vivem, qual é seu gênero, raça, idade. A perspectiva feminista interseccional, para mim, no papel de gestora, essa compreensão da necessidade de ter uma visão ampla sobre o que é essa política pública, qual o público-alvo, suas distintas realidades e o que nós, como gestão, precisamo fazer para atingir esse grupo social específico que é majoritariamente vitimizado.
Quando a gente pensa em uma política de segurança no Brasil, onde mais de 40 mil pessoas morrem por ano, das quais 80% são negras 90% homens e 60% são jovens, mas tem uma ampliação de violência contra as mulheres nesse cenário, especialmente as mulheres negras, precisamos entender onde elas vivem, em que regiões, estados, municípios, e como a gente consegue, a partir do governo federal, construir uma política de indução que de fato chegue nessas pessoas.
–A segurança pareceria ser um tema cooptado por setores conservadores, o que tende a levar também a opinião pública por esse lado. O que representa ter uma mulher negra coordenando um programa nacional como o Pronasci? O que pode trazer em termos de políticas públicas e de percepção sobre o que significa a segurança na sociedade?
–Para mim foi muito louco. Além de mulher negra, eu sou jovem, e sempre tem uma discussão sobre a experiência necessária para se estar nesse espaço. Mas além de ser jovem, eu tenho graduação, um mestrado na área, pesquisas, fui Secretária Adjunta de Segurança Pública de Diadema, um município que tem um histórico na produção de segurança pública preventiva. Tem também uma dinâmica que é: somos levados a acreditar que a segurança pública é só um tema de polícia, ligado à repressão, e não é. A segurança tem que ser uma política transversal ao acesso à educação, cultura, moradia, emprego, mobilidade, urbanismo. Tudo isso está relacionado com a segurança pública.
Sou uma mulher negra, jovem, da periferia de São Paulo e parte do movimento social, mas ao mesmo tempo sou formada em Direito, mestrado em direito econômico, pesquiso sobre segurança pública há mais de dez anos. Assim, no processo da política pública e na coordenação de um programa de segurança pública e cidadania como é o Pronasci, eu consigo trazer a visão do movimento, de reivindicação, e de parte inclusive do alvo desse processo de violência, e ao mesmo tempo, uma visão mais técnica, de pesquisa e gestão que precisa ser trabalhada em conjunto para construir uma política que seja efetiva.
É um desafio muito grande. Costumam dizer “ai, menina, que nova!”. Mas, ao mesmo tempo, aqui no Ministério, o ministro Flavio Dino [Ministro da Justiça no momento da entrevista, em novembro de 2023] é uma pessoa que me respeita muito e me dá esse espaço de produção, construção, inclusive de visibilidade. Isso também quebra alguns preconceitos, porque quando você tem um ministro que te empodera no espaço onde você está, quebra qualquer tipo de preconceito ou de descrédito. Isso se rompe quando uma figura de poder nesse espaço também te dá poder para construir política; te empodera na sua posição de coordenação.
–Em relação a essa perspectiva interseccional e feminista, que obstáculos concretos se apresentam na gestão pública? Há embates? Quais são os desafios nesse sentido?
–Existe um entendimento muito grande sobre a noção de interseccionalidade da segurança e da construção de políticas transversais e dos grupos-alvo. A criação do Ministério da Igualdade Racial, o Ministério das Mulheres, o Ministério dos Povos Indígenas, a Secretaria Nacional da Juventude; tudo isso traz uma visibilidade desses públicos de política pública. Há uma compreensão uníssona no âmbito do governo federal quando tentamos construir recortes sobre quem efetivamente queremos atingir.
Não me lembro de nenhum embate de pessoas discordando da centralidade e o foco na população negra e nas mulheres quando pensamos em política pública de segurança, ou com um recorte da juventude negra quando pensamos na prevenção da violência na juventude. Acho que no âmbito do governo federal tem uma consciência geral sobre a importância desses recortes. No âmbito da sociedade é um desafio maior, dado o processo histórico do Brasil das violências generalizadas, do racismo estrutural, do machismo.
–Como é o vínculo com o movimento feminsita negro de base? Há espaços de convergência, articulação e encontro? Há tensões? Como é sua experiência nesse sentido?
—Tem tensões, claro, porque estamos em uma pasta de segurança, e é um tema que, no Brasil, é muito difícil. Deveríamos estar falando de proteção à vida, mas, na prática, falamos sobre mortes generalizadas de um grupo bem específico. Então, sempre há tensão com os movimentos sociais, e acho que é saudável que tenha. Porque é necessário cobrar do governo, e é o seu papel fazer um processo de escuta e pensar como podemos responder.
Uma questão é que o Brasil é uma república federativa: existe a união dos estados e municípios, e cada um tem uma competência em relação a essas políticas de segurança. O Estado tem a principal competência quando consideramos a atuação das polícias militares e civis. No caso do Ministério da Justiça e Segurança Pública do governo federal, trabalhamos como indutores de políticas, com repasse financeiro, com desenho de políticas públicas que precisam ser implementadas pelos estados e municípios. Essa compreensão por parte do movimento social de que não conseguimos interferir diretamente na atuação de uma cidade ou de um estado específico às vezes se faz um pouco difícil. Mas também estamos para ouvir, falar e pensar maneiras de atender essas demandas que se apresentam.
–Existem instâncias de troca com os movimentos?
–Existem os conselhos, e fazemos reuniões e conferências municipais. Já fizemos neste ano [2023] aqui no ministério. Sempre que o ministério é acionado pelos movimentos, temos reuniões inclusive com a presença do ministro. Fizemos alguns encontros com coletivos nos territórios como São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia…
–Como é o relacionamento com outras feministas dentro do Estado? Elas estão organizadas, há um espaço próprio para discussão ou de apoio?
Já houve um encontro de jovens gestoras do governo federal. Nesse encontro, falamos sobre construir um fórum para um processo de troca permanente, mas ao mesmo tempo a gestão consome a gente. Para instituir um espaço desse, falta o tempo de alguém, pegar isso na mão, enquanto a gestão como um todo nos toma muito tempo. O Ministério das Mulheres sempre constrói um espaço de formulação, mas no âmbito de pensar as políticas públicas que estão sendo pensadas para as mulheres. Eu diria que não tem uma coisa muito organizada, mas houve tentativas piloto de diálogo.
–Não existe uma agenda comum, então.
–Eu sei de experiências, encontros, fundo do governo, mas nada estruturado para isso.
–No entanto, há uma convergência sobre a perspectiva interseccional.
–Sim, inclusive isso está destacado no programa que eu coordeno. Temos cinco eixos prioritários. O primeiro é o enfrentamento da violência contra a mulher, o quinto é o enfrentamento ao racismo estrutural e todos os crimes daí derivados. Isso está como diretriz de atuação dos nossos trabalhos.
–Qual foi a maior surpresa, positiva ou negativa, ao ocupar um cargo no Poder Executivo e a possibilidade de avançar em políticas públicas feministas? A partir da sua experiência, considera possível transformar o Estado a partir de dentro?
–A surpresa foi o convite em si. O Pronasci foi o principal programa de segurança pública da segunda gestão do governo Lula. Eu estava no governo de transição, fui relatora sobre o Pronasci, fiz uma análise sobre o programa, os pontos positivos, negativos etc. Mas como eu comentei: eu sou jovem, né? Tenho experiência de mais de um ano e meio de gestão municipal, e por mais que eu pesquise segurança há mais de dez anos, pesquisar é uma coisa e levar à prática é outra. Então, eu imaginava que seriam outras pessoas que estariam nesse espaço. O convite em si para mim foi uma surpresa muito grande para mim.
Ao mesmo tempo, a oportunidade de ser quem eu sou, de onde eu vim, com a experiência de militância que eu tive, para mim é um desafio de vida. Essa discussão sobre segurança com cidadania é, para mim, uma discussão de vida. A principal luta do movimento negro no Brasil hoje é contra o genocídio. Pensá-lo como genocídio é basicamente como a gente consegue construir uma política de segurança que seja relacionada à defesa da vida, da população negra, a garantia de direitos em uma perspectiva transversal, e não em uma perspectiva de violência. Esse é um tema que eu vou lidar para sempre: comecei na graduação e eu vou terminar a minha vida dando essa discussão, e espero que venham respostas concretas em relação a isso.
Ter a oportunidade de coordenar um programa de segurança cidadã que pensa essa transversalidade, que faz uma discussão de indução com os estados do município, que provoca as outras áreas aqui da esplanada para também ter essa perspectiva transversal pensando na segurança pública, para mim é um sonho realizado. É uma experiência muito legal, e em especial por ser um programa que já foi implementado, que tem uma marca, uma expectativa: as pessoas já conhecem, se empolgam também, querem fazer acontecer, levar aos territórios.
–É interessante essa interlocução nos territórios. Tem sido enriquecedor para você nesse sentido, ver o problema de um lugar novo?
–Com certeza. É até engraçado, porque antes era eu quem estava apontando e agora sou a que tem que dar respostas [risos]. Mas é divertido, é pedagógico, também, estar nessa posição
–Em que sentido é pedagógico?
–No sentido de entender. Porque quando somos da sociedade civil e estamos na posição de cobrança, não entendemos como funciona a gestão pública, quais são os processos para desenhar e implementar uma política pública, de como funciona essa articulação dentro do governo. Vindo para cá, desse lado do balcão, você descobre que não é assim, quero fazer uma coisa e ela está feita no dia seguinte. Tem toda uma burocracia do Estado e passos que precisam ser tomados, e discussões, a consultoria jurídica, as áreas, as notas técnicas, o orçamento, o desenho, direcionamento, que fazem com que as coisas não sejam tão simples assim. Nesse sentido é pedagógico, que a gente percebe que o tempo da reivindicação não é o mesmo tempo da produção da política pública. E você percebe as críticas que são feitas ou não, qual é o direcionamento que pode ser dado.
–Você acredita que esta experiência no Estado pode mudar sua forma de reivindicar?
–Sim, muda sua forma de pensar a política. Quando eu era só pesquisadora de segurança pública, eu tinha uma determinada visão, algo que mudou quando comecei a trabalhar no município de Diadema. E mudou ainda mais com esta experiência agora [no governo federal]. Uma coisa é pensar no papel, na leitura, com base nas discussões, e outra é pensar um tema, uma política, uma reivindicação com base nas dinâmicas de como o Estado e a produção da política pública funciona, o contato com os agentes de segurança, inclusive. Mudei muito minha percepção na área de segurança pública depois das experiências de gestão que eu tive e a que estou tendo agora.
–Nesse sentido, que planos você tinha no ativismo e como isso se transformou agora no Estado, e por que?
– Eu não tinha planos, na militância você tem reivindicações. Você quer o fim da violência como militante. Isso não é um plano por si só, isso é uma reivindicação. Quando pesquisei sobre segurança cidadã, pensava em uma segurança que fosse vista como garantia de direitos, de uma maneira transversal. Isso é uma ideia.
Vindo para a gestão, o pensamento já se torna como transformar isso na prática. Você faz uma gestão nacional, acompanha os indicadores de violência no país, seleciona os territórios mais violentos, identifica quem é violentado, identifica quais são os principais desafios em relação a esse grupos, não só no âmbito da segurança, mas em educação, saúde, emprego, moradia, assistência social. Daí, faz uma articulação de quais políticas podem atingir esses territórios, articula com as forças de segurança, faz formação. Você passa a pensar a partir do que o governo federal pode fazer, em articulação com os governos estaduais e municipais, e como essa política pode ser implementada. É uma chave que vira.
–Nos últimos anos, os avanços das novas direitos, surgiram discursos pejorativos sobre o feminismo que tendem a situar temas relacionados ao feminismo como uma agenda de minorias, como algo menor ou menos importante. O que você opina sobre isso?–Quem se nega a dar uma discussão, sobre qualquer tema, que tenha como base recortes de gênero, raça, classe e idade, está negando uma discussão com base na realidade. O Brasil é um país com mais de 200 milhões de habitantes e essas pessoas moram em algum lugar, têm um gênero, uma raça, fazem parte de uma classe social, têm uma idade. Tudo isso tem uma consequência na forma como essa pessoa vive, como ela tem acesso à política pública, como ela tem oportunidades ou não. Então, é básico para a produção de política pública, para quem quer ser um gestor que de fato atenda as necessidades da população brasileira, fazer esse recorte. Quem se nega ou acha que isso é bobagem, não está dando uma discussão com base na realidade.
“Institucionalizadas: cuando los feminismos se vuelven parte del Estado” es una investigación especial transnacional de LATFEM sobre Argentina, Uruguay, Chile y Brasil con apoyo de FESminismos, proyecto regional de la Fundación Friedrich Ebert (FES).